Fique tranquilo, ninguém aqui vai recorrer àquele palavrão que feirantes e jornalistas burocras adoram repetir: mad**ro. É um pouco por aí, mas, ao mesmo tempo, não é. Após 17 anos de carreira, quase todos eles em posto hegemônico no pop nacional, o Skank chega ao décimo disco (incluindo na conta a coletânea Radiola) sem complexos e em paz com suas origens e essência. Quem já vendeu, entre CDs e DVDs, cerca de 5,5 milhões de cópias, teoricamente não precisa provar mais nada para ninguém. Até aqui, porém, Samuel Rosa, Henrique Portugal, Lelo Zaneti e Haroldo Ferretti trabalhavam sob uma patrulha auto-imposta: jamais soar presos a fórmulas vencedoras.
Em Estandarte, o que se ouve é uma banda que decidiu relaxar e, sem trocadilhos, fazer gozar. “Teu prazer é o meu estandarte”, proclama Samuel na fervida faixa “Chão”, balanço com tempero eletrônico e riff de guitarra à ZZ Top. “Céu que te convida/ Onde o som bater/ Eu me encaixo/ Groove na medida/ Eu te espero em cima ou baixo”, avisa a letra do velho parceiro Chico Amaral, depois de mencionar de passagem a caliente “Hey Negrita”, pérola funky dos Rolling Stones de 1976. Segundo Samuel, a idéia original perseguia outra referência stoniana, a discothèque “Emotional Rescue”, de 1980, com vocais em falsete, dobrados.
Em discos anteriores, a simplicidade (dois acordes) da canção poderia ter sucumbido a cobranças internas. Desta vez, não. “Já tivemos esse pudor, mas agora nos permitimos ser bem mais espontâneos”, revela o cantor.
A faixa de abertura, “Pára-raio”, já chega chamando na chincha. Investe num balanço híbrido irresistível estilo Roberto Carlos ?71, entre o soul e a Jovem Guarda, com naipe de metais no indo-e-vindo e letra de Nando Reis: “Seu brinquedo imaginário/ Feito pra lhe distrair/ Paro dentro, entro e saio”… Não é duplo sentido, é ripa na chulipa mesmo, amigo. E isso sem falar no momento I-wanna-be-your-dog: “Lato intenso em detalhes/ quero você aqui”.
Como brinca o próprio Samuel, trata-se de um discurso “menos assexuado, mais obsceno”. Ou, como eu gostaria de colocar agora, com jeitinho: é papo convexo sob medida para o côncavo do pop brasileiro atual, tão carente de sexo em meio ao chororô emo e às ladainhas seriosas tipo “atitude consciente”.
Estandarte é um feliz reencontro com o produtor Dudu Marote, velho companheiro que ajudou a transformar em discos de diamante (mais de um milhão de exemplares vendidos) os álbuns Calango (1994) e O Samba Poconé (1996). Como a intimidade é uma – você sabe, aquilo que a inveja também é… -, Dudu chegou sem nenhuma reverência. Ao criticar aqui e ali como outros produtores não ousariam fazer, fez subir o nível de exigência da banda. E deu um norte fundamental a partir do conselho de amigo: “Dêem mais risada, sejam mais despretensiosos”.
Que fique bem claro aqui, como está nas 12 faixas do disco: o Skank não foi atrás de Dudu em busca de momentos gloriosos do passado, de uma suposta jamaiquice perdida. O vasto conhecimento do produtor em música eletrônica e balanço era exatamente o que o quarteto queria para evidenciar sua natureza de banda de levadas, de hits de pista e grooves. Acima de qualquer nostalgia por reggae, ska ou dancehall.
Estandarte foi gravado entre janeiro e agosto, em esquema diferente dos trabalhos anteriores: aos poucos, nos intervalos que a agenda de shows permitia. A maior parte das composições evoluiu a partir de levadas lapidadas em jams no estúdio Máquina, em Belo Horizonte. Valeu o azeitamento que a estrada proporciona: muito do que foi tocado nessas sessões “brutas” sobreviveu na versão final – em especial, os teclados.
Na faixa “Notícias do Submundo”, a guitarra é toda de primeiro take, sem overdubs. Os mais cultos irão detectar Homero e Rimbaud na letra, mas a massa roqueira deve viajar mesmo é com o psicodelismo quase garageiro exposto.
As influências sessentistas e beatles não foram abandonadas. “Escravo” hipnotiza com o groove à go-go filiado a “Taxman” e tantos outros hits da década-chave do rock, o charme exótico da sitar a sublinhar a letra romântico-muçulmana (!). “Assim Sem Fim”, parceria com Cesar Mauricio (ex-Virna Lisi e Radar Tantã) tem roupagem que cabe no que eles chamam de encontro de LCD Soundsystem com John Lennon. Mas na alma e na cervical melódica é puro Clube da Esquina.
E espere até ouvir “Sutilmente”, uma daquelas baladas de simplicidade brilhante, feita a partir de linda letra de Nando Reis e emoldurada em luxuoso arranjo de cordas… Fica evidente que também não há ruptura com a canção mineira, até porque ela está na essência do grupo muito antes de “Resposta” (antes até de ele adotar o nome Skank…). “Este disco é, mais do que qualquer outro, a síntese de tudo o que o já fizemos. Se é que uma banda pode fazer a síntese de tudo que ela fez, 15 anos depois…”, questiona Samuel.
Um bom resumo de Estandarte é a faixa que já está nas rádios, nos tocadores de mp3 e no coração dos fãs. “Ainda Gosto Dela” é um docinho pop edulcorado pelos vocais de apoio de Negra Li, que acariciam nossos ouvidos uma oitava acima de Samuel. Romântica, naîf e digna sucessora de hits como “Dois Rios”, com efeitinhos eletrônicos na moldura do refrão mais beniano (de Jorge Ben, bem entendido!) já ouvido nas últimas três décadas. Uma mistura original e pra lá de brasuca, amostra perfeita do que o talento de Haroldo, Lelo, Henrique e Samuel vem produzindo há 17 anos.
Na capa, uma bela pintura a óleo honra a tradição da arte pop surrealista na embalagem dos discos do Skank. A despeito do que o clima “menos assexuado” do disco possa sugerir, a loira pelada com o olho a verter um líquido verde não é decorrência de briefing algum. Ela é fruto da visão particular do paranaense Rafael Silveira, 29 anos, um artista influenciado pela publicidade dos anos 1940 e 1950, por quadrinistas como Robert Crumb e pelos pintores Mark Ryden e Eric White. No encarte, outras nove obras dão a dimensão do talento de Rafael, já reconhecido pela editora americana Dark Horse, que edita os livros de Frank Miller.
Pedro Só – outubro de 2008
P.S.: Por essas e outras é que duas feras americanas trabalham com o Skank direto, garantindo uma qualidade superior de som: Michael Fossenkemper, responsável pela mixagem de O Samba Poconé, e Radiola, e o legendário Bob Ludwig, que assina a masterização. Não é uma correria qualquer para os gringos. Desta vez, Bob até fez questão de elogiar a perfeição técnica de “Chão”. Vindo que quem está acostumado a mexer com sons de Paul McCartney, Nirvana e Led Zeppelin, não é pouca coisa.